Para lá da identidade
Por Alexandre Honrado
Preocupa-me muito a questão da identidade. É um tema digno de atenção e de discussão e que conduz muitas vezes a portas fechadas e a contradições. Curiosamente, é também um motivo que ocupou muitos pensadores e investigadores e que teve nos últimos 40 anos um reforço notável da teórica que lhe era exigida: que identidade é a nossa agora que voltámos ao núcleo essencial, ao pequeno espaço de onde partimos, europeus numa faixa litoral, sulista e pobre, criativa e altruísta, a procurar esquecer os erros passados, as limitações e os excessos, os formatos expansionistas, esclavagistas, colonialistas, imperiais e tantos outros que não produziram uma identidade coletiva – Portugal e colónias ou Portugal e províncias ultramarinas sempre estiveram longe de ser homogeneidade e apesar dos símbolos que procuravam ser identitários – Bandeira, Hino, hierarquia de poder centralizado, ou pequenos símbolos, tais como as moedas, notas, selos e estampilhas comuns a quase todo o território que todavia produzia elementos locais, as tais notas, moedas, selos e estampilhas que traduziam o local e andavam longe do global e que hoje na história figuram no campo dos fracassos e dos êxitos, mas não na página da identidade coletiva ou dos argumentos inequívocos.
É um desafio a interpretações do individual – cada um de nós é um indivíduo, que se traduz através de uma carga individual que muda com o tempo, o indivíduo que fomos no berço e ao qual foi imposta uma identidade – com a simbologia de um nome, por exemplo, com a formatação mais ou menos determinante de uma família ou de um universo cultural, com caprichos religiosos, sociais, étnicos, económicos, institucionais, mentais e tantos outros, com o traçado expectável de um “destino” que espera pela identidade que foi construída logo à nascença, entre tantos outros múltiplos fatores. Um pouco mais tarde, numa idade em que ainda não sabemos bem quem somos mas já damos pelo nome que nos impuseram, vem o registo civil confinar-nos numa lista institucional, querendo afirmar-nos pela forma como estamos no território e pelas marcas da territorialidade que interage connosco – colando-nos mecanograficamente a um número de série que figurará cedo num “cartão” de cidadão, mas não na extraordinária formação do uno e do indivisível.
Até o Bilhete de Identidade, repare-se, teve de ceder à evidência de um outro nome que melhor traduz aquilo que pretende registar, o cartão do cidadão, porque somos marcados pelas exigências da cidadania e não pelas de uma identidade que pode sempre mudar ou atualizar-se.
A identidade é flutuante, é o percorrer de um trilho de esquecimento e de memória, tantas vezes deslocalizados.
Sendo a vida uma rota e um movimento perpétuo, cada um de nós é produto dos efeitos transculturais que nos desafiam, dificilmente podemos aceitar-nos como pontos irredutíveis, identitários, num mapa global, numa cartografia do imutável.
Mudamos de tamanho enquanto crescemos, de ideias quando as aprendemos, de opções quando vivenciamos ou corremos o mundo, de gostos quando descobrimos novos desafios ao paladar, ao tato, à afeição, ao sexo, porque somos progressistas – mesmo que nos convençam que as ideias que mais conservamos devem ser o nosso confinamento e não a nossa expansão.
Somos, de certa forma, mutantes. Menos indivíduos do que pensamos, porque se nos rendermos ao “principium individuationis”, ao princípio da individuação, não passamos de náufragos na ilha isolada do egoísmo.
Uma das escolas da psicologia – a Junguiana – celebrava o processo da individuação como a “realização de si mesmo”. Mas sem o outro seremos alguma coisa?
Todos as épocas têm em comum os seus medos coletivos – a nossa prende-se com o Covid-19, o vírus letal, a nossa realidade ameaçada. Mas cada um de nós interpreta a ameaça de uma forma diferente, que nos deixa muito longe da categoria de uma identidade coletiva onde todos estariam com todos para se mobilizarem coletivamente numa luta sem tréguas até ao resultado final. E em nós há a tremenda contradição desse medo, que nos leva a fazer, a dizer, a sentir as coisas mais inesperadas e pouco acertadas, distanciando-nos do que devia ser a nossa identidade afirmativa passando-a pelo crivo dos temores e obrigando-nos a jogos de cintura inúteis e desesperados – hoje desdenhamos da máscara, amanhã vamos comprar uma dúzia delas, ontem acreditamos na mentira de um líder poderoso que diz ter-se curado em vinte e quatro horas, hoje afligimo-nos com o craque da seleção nacional que testou positivo, ontem queremos ir para o bailarico do nosso partido político hoje entramos numa procissão igualmente perigosa, nada disto porque temos uma irrepreensível identidade mas porque mudamos ao sabor do que somos inevitavelmente: humanos.
Preocupa-me muito a questão das identidades – a individual e a coletiva – e talvez um dia venha a saber o que sejam.
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